Teleféricos, nevados e estradas perigosas: conhecendo La Paz e seus arredores
Na Bolívia, a geografia extrema se reflete em experiências únicas e contrastantes. Em La Paz, funciona a maior rede de teleféricos urbanos do mundo, que liga a capital administrativa a El Alto e outros bairros em meio a um cenário repleto de montanhas. Nevados, como o imponente Huayna Potosí e o Chacaltaya, não são apenas cartões-postais, mas também guardiões espirituais da cultura andina e destinos para alpinistas de todo o mundo. Juntos, traduzem a essência de um país onde a natureza e a engenhosidade humana convivem em equilíbrio entre risco e grandiosidade.
Os desafios da mobilidade urbana na capital mais alta do mundo
A cidade de La Paz está situado em uma região em que, além da altitude superar os 3.000 metros acima do nível do mar, possui grandes desníveis entre regiões da cidade, superando até mesmo os 400 metros. Isso fez com que os projetos de expansão do transporte público optassem pelo uso de teleféricos ao invés de trens e metrôs, como é feito na maior parte das grandes metrópoles ao redor do mundo. Inaugurada em março de 2019, o sistema Mi Teleférico, que conecta as cidades de La Paz e El Alto é reconhecido pelo Guinness World Records como a maior rede de teleféricos de transporte público do mundo, contando com 10 linhas, 32 estações e aproximadamente 33 km de extensão total. Em meio a um trânsito de veículos um tanto conturbado, utilizar o sistema de teleféricos para visitar diferentes pontos da cidade pode ser uma excelente opção para quem busca ver a cidade de diferentes ângulos, passando por diversas regiões em um intervalo de tempo bastante otimizado.


O interior das estações é bastante limpo e moderno e lembra muito as estações de metrô de São Paulo, principalmente as mais novas. Em janeiro de 2022 a passagem custava menos de 2 reais por trecho, e embora exista uma espécie de baldeação entre as linhas, é necessário passar novamente pelas catracas e realizar o pagamento. Iniciei o trajeto pela linha amarela e já de cara pude ver diversas formações montanhosas que existem na região. Ainda sobre as formações montanhosas, um dos passeios que eu estava planejando realizar no dia anterior era justamente a visita ao Vale das Almas (Vale de Las Ánimas), que é formado por imensos paredões de arenito e argila erodidos, criando torres e agulhas rochosas que lembram catedrais naturais ou esculturas gigantes. Devido as chuvas e ocorrência de deslizamentos de terra na região, os passeios estavam suspensos. Pude ao menos ter uma prévia da singularidade e beleza dessas formações.

Outro ponto que torna o teleférico de La Paz único é justamente o fato dele não ser uma construção feita exclusivamente para fins turísticos, mas sim para ser usada no dia-a-dia pela população. Isso reflete não apenas no seu valor acessível, mas também nos locais pouco turísticos da cidade que ele percorre, passando sobre bairros inteiro, feiras, estádios de futebol, avenidas movimentadas e até mesmo áreas mais nobres da cidade. Observar a vida cotidiana de pessoas comuns acontecendo é algo que me deixa bastante curioso quando visito lugares novos, e o teleférico veio em encontro com isso.

Em diversos trechos, o teleférico passa bastante próximo as casas das pessoas, podendo até mesmo ver o interior dessas. Alguns trechos possuem bastante desnível, e assim como em metrôs e trens, são realizadas algumas pausas entre os trechos para que as cabines fiquem devidamente espaçadas, o que acrescenta à experiência uma bela dose de adrenalina. Pra quem tem fobia de altura, pode ser uma experiência um tanto desagradável.

A linha azul é uma das mais extensas do teleférico e passa por regiões essencialmente comerciais. As feiras livres são uma marca registrada da Bolívia, e ocupam ruas de forma quase interminável. Na região de El Alto existe uma feira chamada de 16 de Julho, considerada inclusive a maior feira ao ar livre da América Latina. Através dessa linha é possível chegar em estações próximas ao Aeroporto Internacional de El Alto, principal porta de entrada para quem viaja de outros países até a Bolívia.

A linha vermelha faz a ligação entre El Alto e La Paz, sendo que as cabines transitam de forma quase que vertical devido ao desnível. Fica explícito o quanto os teleféricos facilitam a locomoção dos moradores, visto que esses trajetos realizados a pé ou de transporte terrestre levariam muito tempo. Justamente durante esse trecho houveram várias paradas. O jeito foi focar na paisagem e torcer para que as manutenções das cabines e cabos de aço estivessem em dia rsrs.

Finalizando o passeio, peguei a linha branca, que me levaria até uma estação bem próxima do local em que estava hospedado. Essa linha é um tanto diferente das demais, pois passa por áreas da cidade cuja arquitetura foge um pouco do estereótipo que imaginamos quando ouvimos falar da Bolívia. Pude observar prédios residenciais bem acabados, ruas arborizadas e com pouco tráfego de veículos e pessoas, além de calçadas e marcações de faixas na rua em bom estado.
Ainda sobre a questão das moradias, conversando com locais descobri que em alguns municípios bolivianos, incluindo a capital, impostos sobre propriedades são mais baixos quando a construção é considerada “incompleta”. Uma casa sem reboco ou sem telhado final pode ser declarada como “obra em andamento”, o que reduz o valor do imposto. Existe também a questão financeira: muitas famílias constroem suas casas aos poucos, conforme têm dinheiro. O acabamento externo (reboco, pintura, revestimento) é a última etapa e também uma das mais caras — por isso, muitas casas ficam sem reboco por anos ou até indefinidamente.

Mesmo que seja um discurso bastante batido, sinceramente penso que utilizar o transporte público dos lugares é uma excelente oportunidade de entrar mais a fundo na forma como as pessoas vivem. É claro que nem em todos os lugares isso é viável, principalmente em cidades menores e regiões mais isoladas (situações em que usar transportes de aplicativo ou até mesmo compartilhados, seja mais interessante), mas estando em cidades grande esse é definitivamente um rolê que eu não abro mão.
Como nem só de teleférico vive o homem, foi hora de almoçar. Nessa segunda passagem pela cidade fiquei hospedado em uma região com diversos restaurantes argentinos e uruguaios, e não pude deixar de provar alguns cortes de carne bem típicos desses países. Após alguns dias vivendo a base de truta e quinoa, foi hora de voltar às carnes vermelhas.

Chacaltaya: o gigante andino que já foi a estação de esqui mais alta do mundo
Um dos passeios que estava mais ansioso para fazer nessa viagem para o Bolívia é o do hiking até o Chacaltaya, situado a cerca de 30 km de La Paz, na Cordilheira dos Andes, com altitude de 5.421 metros acima do nível do mar. Lembro de ter visto algum post de brasileiros que visitaram o local poucas semanas antes da minha viagem e, ao entrar em contato com eles, me passaram o contato da agência e algumas dicas de roupas para o passeio. Lembro de ter pagado pouco mais de 100 reais pelo passeio que duraria cerca de 05 horas, saindo da sede da agência, no centro de La Paz.

Cheguei na agência e poucos minutos depois já iniciamos o embarque. O ônibus estava praticamente lotado e de pronto já conheci dois brasileiros, também moradores de São Paulo, que estavam a passeio na Bolívia. Falando mais sobre o Chacaltaya, ele já foi a estação de esqui mais alta do planeta, sendo muito procurada por turistas e esquiadores. Hoje, o degelo quase total do glaciar transformou a área em um terreno rochoso, tornando impossível a prática de esqui como antes. Estudos mostram que ele era um dos glaciares tropicais mais altos do mundo, mas perdeu quase 99% de sua massa em menos de 50 anos. Apesar do degelo, Chacaltaya ainda atrai turistas por sua altitude impressionante e pela vista panorâmica da Cordilheira Real.

O caminho de La Paz até o distrito de Alto Milluni, onde está localizado o portão de entrada para o Chacaltaya foi bastante tranquilo. Passamos por rebanhos de lhamas, vimos paisagens onde as nuvens praticamente tocam o topo das montanhas, além de presenciarmos moradores locais realizando cerimônias religiosas.



Logo após passarmos o portão de entrada, paramos no mirante Jilarata, onde descemos do ônibus para apreciarmos a vista e tirar fotos. Nesse mesmo local, nossa guia nos orientou em um ritual de permissão à Pachamama (Mãe Terra, na cultura andina) para que acessámos a montanha. Nesse ritual foram oferecidas folha de coca secas e álcool, sendo depositadas embaixo de uma pedra. A relação dos andinos com a Pachamama é de respeito, gratidão e interdependência. Eles oferecem e recebem da Mãe Terra, mantendo um vínculo espiritual e cultural que permeia todas as áreas da vida: agricultura, economia, saúde, festividades e identidade cultural.

Permissão cedida, é hora de seguirmos viagem. Nossa primeira parada foi na represa de Milluni, que desempenha um papel crucial no fornecimento de água potável para as cidades de La Paz e El Alto, sendo considerada uma infraestrutura estratégica para a segurança hídrica da região. Situada a aproximadamente 4.200 metros de altitude, a represa é alimentada por águas provenientes do glaciar Huayna Potosí (um dos principais do país) e do Rio Milluni. Além de fornecer água potável, a represa também é utilizada para irrigação agrícola e geração de energia elétrica.

A guia nos contou que a região de Milluni tem uma rica história ligada à mineração, especialmente durante o auge da atividade mineradora no século XX. O antigo povoado de Milluni, que existia nas proximidades da represa, foi abandonado após um trágico evento conhecido como a Masacre de Milluni, ocorrida em 1965, quando trabalhadores mineradores foram mortos durante uma greve. Hoje, o local abriga um cemitério de mineiros e ruínas que servem como testemunhos históricos.

Após a passagem pela represa, nosso ônibus iniciou uma subida bastante íngreme, por uma estrada extremante estreita, onde por um lado havia a parede de rochas e no outro o abismo. Na maior parte do trajeto a estrada comportava apenas um veículo por vez, sendo necessário realizar recuos em marcha ré ou até mesmo praticamente encostar na rocha. Pra deixar o clima ainda mais tenso, nosso ônibus era bastante antigo e apresentava algumas falhas conforme íamos subindo. Esse foi, sem dúvidas, o momento mais tenso da minha viagem pela Bolívia. Nem mesmo a guia, que estava habituada com esse trajeto, conseguia demonstrar tranquilidade. Com alguns gritos de “fuerza guerrero”, e algumas pausas para que outros veículos ocupassem a pista, chegamos no destino.


Chegando na entrada, fizemos um registro no centro de visitantes e na sequência iniciamos a subida. Tentamos manter o grupo próximo à guia durante o trajeto, visto que a neve estava bastante espessa e a visão reduzida, porém a união durou poucos minutos. Já de início algumas pessoas desistiram, especialmente por estarem com crianças (quem que leva criança pra esse tipo de rolê? rsrs). A guia orientou que aguardassem no centro de visitantes, enquanto seguíamos rumo ao ponto mais alto.


A subida já um desafio e tanto, principalmente pelo frio e pela presença da neve. Somando a altitude de mais de 5.400 metros, é fundamental ir extremamente devagar, equilibrando a respiração, tomando água aos poucos e pisando cuidadosamente. Foram aproximadamente 40 minutos de subida.

Após voltarmos ao centro de visitantes, fomos recebidos com bebidas quentes para amenizar um pouco a sensação de frio. Embora seja um passeio bastante contemplativo, a sensação de estar acima dos 5.000 metros de altitude é única e possível de ser vivenciada em poucos lugares no planeta. Caminhar em meio a neve, tendo que equilibrar a respiração, frio e o sentimento de “poderia estar no hotel embaixo das cobertas”, fizeram dessa experiência uma das mais marcantes que já vivi. O Chacaltaya é, ao mesmo tempo, um símbolo de como nossas ações causam impacto nas mudanças climáticas e um marco cultural e turístico da Bolívia, reunindo paisagens espetaculares, ciência e história. Para encerrar, a foto do grupo, em frente ao centro de visitantes.

E para finalizar o rolê, algumas curiosidades sobre o Chacaltaya:
- O glaciar que cobria o Chacaltaya tinha cerca de 18 mil anos, mas desapareceu quase por completo em 2009, devido ao aquecimento global e mudanças climáticas;
- No topo está o Observatório de Raios Cósmicos Chacaltaya, fundado em 1942, um dos mais antigos da América Latina. Ali se estudam partículas vindas do espaço, aproveitando a altitude e o ar rarefeito;
- Do cume, em dias claros, é possível avistar o Lago Titicaca, a cidade de La Paz e até a vasta extensão do Altiplano boliviano. A vista inclui também montanhas icônicas como o Huayna Potosí;
- É um verdadeiro teste de altitude: como está acima dos 5.400 m, é um dos lugares mais acessíveis do mundo para sentir os efeitos da altitude extrema. Muitos visitantes relatam falta de ar, dor de cabeça e cansaço intenso após pequenas caminhadas.
Nosso retorno para La Paz foi relativamente tranquilo. Após a subida tensa, minhas definições de medo de penhasco foram atualizadas com sucesso rsrs. Como pra descer todo santo ajuda, chegamos em La Paz em pouco mais de uma hora.
Últimos momentos em La Paz e retorno ao Brasil
No meu último dia por La Paz, resolvi caminhar pela região central em busca de souvenirs e de um casaco de lã estilo inca que havia visto no primeiro dia que passei pela cidade. O clima nesse dia estava bastante ensolarado, o que fez com que a minha impressão sobre a cidade mudasse bruscamente. Encontrei ruas bastante tranquilas, com as cores dos prédios históricos devidamente reveladas, várias cafeterias e pequenos comércios em funcionamento.



Acabei não fotografando muitas coisas nesse dia. Embarcaria de volta ao Brasil na manhã do dia seguinte e estava um tanto pensativo após tudo o que tinha vivido após aqueles 14 dias de Bolívia. Havia sido o maior choque cultural que vivera até o momento, e ironicamente, em um país vizinho do meu. Sempre que ouvia falar em Bolívia, as primeiras coisas que passavam na minha cabeça eram relacionadas a um país totalmente desorganizado, onde as leis não eram cumpridas e que seria perigoso até mesmo andar na rua. Isso só reforça a ideia de que muitas vezes vivemos tão presos a estereótipos e visões criadas por terceiros, que nos privamos de conhecermos as coisas por nós mesmos.
Infelizmente, a maior parte da população brasileira não viaja com certa frequência, pelos mais diversos motivos, mesmo que dentro do próprio país. Muito nascem e passam a vida toda morando no mesmo lugar, não leem, se informam através de veículos de comunicação que transmitem informações baseadas nos interesses dos seus proprietários e a partir daí formam suas opiniões. Não sentem sequer o desconforto de descobrirem que suas opiniões são equivocadas, que aquilo que tinham como certo talvez não seja tão certo assim. Como é triste a vida de quem morre com tantas certezas.
Passar esse tempo imerso em uma cultura tão diferente da minha, me vez perceber que estamos tão adiantados em alguns quesitos, mas não atrasados em outros. Me fez agradecer por encontrar uma cerveja estupidamente gelada em qualquer boteco fuleiro que eu vá no Brasil, mas me deixou triste por não poder caminhar em um deserto de sal, subir uma montanha nevada ou até mesmo abraçar um filhote de lhama sempre que sentir vontade. Que é totalmente aceitável de opinião frente a novas evidências, que existem coisas que só acreditaremos vendo. E que para isso, precisamos viajar.