abril 19, 2025

La Paz: Primeiras impressões sobre a capital mais alta do mundo

Por Diego Amaral

A fumaça dos escapamentos das centenas de mini-vans, motos e carros que circulam pelas vibrantes ruas da capital Boliviana, misturada com o aroma de frituras que são preparadas em alguma esquina qualquer e embalados pelo som de vendedores oferecendo desde recargas de celular, fetos de lhama ou até mesmo poções milagrosas, formam a atmosfera em que a altitude de mais de 3.600 metros acima do nível do mar exige um esforço extra para o sangue seja devidamente oxigenado. Um maço de folha de coca ou até mesmo um chá quente são armas imprescindíveis quando a missão é explorar a pé a capital mais alta do planeta.

Um destino fora dos planos até então

Estive na Bolívia em 2021, em uma viagem de 15 dias. Não foi algo planejado com muita antecedência ou a mesmo realização de um sonho antigo, mas foi tão surpreendente que passei a recomendar esse destino para todos os que me pedem dicas de lugares baratos, próximos ao Brasil e com uma rica imersão cultural. Lembro de estar conversando com um amigo sobre meus planos de conhecer algum novo país da América do Sul e este me mostrou algumas imagens da viagem que ele havia feito pela Bolívia alguns anos atrás, passando por lugares como o Salar do Uyuni, Gêisers del Tatio, Capacana e Ilha del Sol. Decidi naquele momento que a Bolívia seria o meu próximo destino e no mesmo dia comprei as passagens aéreas para embarcar em exatos 22 dias.

A preparação para a viagem

Essa foi a minha vez viajando para o exterior a passeio (Argentina não conta, blz? rsrs). Já havia viajado outras vezes para fora à trabalho, mas diferente das outras vezes, nessa todas as variáveis estavam sob meu controle, desde a escolha das hospedagens, passeios, roteiro, e claro, os gastos. Como planejava visitar lugares que faziam muito frio, investi em roupas estilo segunda pele, gorro de lã (que acabou ficando no fundo da mochila pois achei mais autêntico usar um gorro Inca que comprei em La Paz), comprei também meias de lã e uma câmera fotográfica (uma Canon M200, que havia sido lançada a pouco tempo, além de ser compacta prometia um desempenho muito bom para imagens externas, que seriam os pontos fortes da viagem).

A câmera acabou se tornando uma das maiores despesas pré-viagem, atrasou a entrega e acabou chegando um dia antes do embarque (já tinha aceitado que só ia ter meu motorola velhinho de guerra pra registrar a viagem hahaha). Apenas tirei a câmera da caixa, carreguei as baterias e vi alguns tutoriais de configurações básicas enquanto aguardava meu voo no aeroporto. Em 2021 era obrigatório ter feito o exame PCR nas 24 horas que antecediam o embarque. Cheguei no aeroporto umas 7 horas antes do voo e fui tendo os meus primeiros contatos com a câmera enquanto aguardava o resultado do exame.

O primeiro registro que fiz com a câmera, o pôr-do-sol logo após a decolagem no trecho São Paulo – Santa Cruz de La Sierra.

Chegando em La Paz e as primeiras impressões sobre a cidade

A viagem foi relativamente tranquila. A conexão foi um tanto conturbada, logo na imigração foram solicitados os exames que comprovassem negativo para a COVID, além de uma declaração de viagem preenchida durante o voo. As filas dos passageiros nacionais e estrangeiros não estava identificada, e a moça que viu os exames mandou eu passar “adelante” sem sequer carimbar meu passaporte. Insisti com ela e esta me direcionou até um balcão do controle de imigração. Por muito pouco não entro no país sem registro de entrada rsrs.

Chegando em La Paz, peguei um Uber usando o Wi-fi do aeroporto mesmo e me dirigi até o hotel onde havia reservado essa primeira noite, bem na região central da cidade. Estava mais cansado que tudo, só tomei um banho e dormi. Ao acordar e abri a janela tive a primeira visão da cidade, e era exatamente como eu havia visto na internet e nos livros de geografia lá do ensino fundamental, quando se falava sobre as características geográficas do país e da tão temida altitude que na capital Boliviana chega a superar os 3.500 metros.

Vista da Janela do Hotel na região central de La Paz. As casas sendo praticamente tocadas pelas nuvens nos pontos mais altos da cidade

A programação para o primeiro dia era bem ousada: fazer o câmbio de dólares por pesos bolivianos, comprar um chip de celular, comprar remédio para o saroche (mal de altitude), comprar o passeio para o Salar de Uyuni e caso sobrasse tempo, turistar um pouco pela cidade. Em geral, a recomendação é que os primeiros dias em La Paz sejam reservados para aclimatação, justamente pela questão da altitude e de seus efeitos sob o organismo de pessoas que não estão habituadas à ela. Mas quem segura o bicho carpinteiro que habita nesse jovem recém-chegado em um novo país, sedento por explorar cada esquina e viela que encontra pela frente?

Terminal de Ônibus de La Paz (Av. Perú, La Paz, Bolívia)

A minha hospedagem ficava a algumas quadras do terminal de ônibus de La Paz, e foi por lá mesmo que consegui cumprir boa tarde das tarefas que havia planejado para o primeiro dia, com exceção do chip de celular. Comprei o passeio do Salar Uyuni em uma operadora de turismo local, para iniciar as 10:00 da manhã do dia seguinte. Já comprei a passagem de ônibus de La Paz até o Uyuni, que sairia as 22:00 do mesmo dia, chegando no destino aproximadamente as 08:30 da manhã. Ainda no Brasil, eu já havia reservado o passeio até o Chacaltaya para um dia após a volta do Uyuni (e acabou dando certo por um intervalo de poucos minutos, como falarei mais adiante), que é uma montanha nevada localizada a 30 km de La Paz, onde antigamente funcionava uma estação de Esqui. Deixei o mochilão dentro da cabine da empresa de ônibus, peguei apenas a mochila de ataque e parti explorar a cidade.

Explorando La Paz

Calle Jaén, uma das ruas mais tradicionais no centro histórico de La Paz e cenários de diversas lendas urbanas que habitam o imaginário dos locais

Explorar a pé uma cidade desconhecida, repleta de história, cultura e construções centenárias é definitivamente uma das minhas atividades favoritas nessa indústria vital. Comecei a minha jornada de exploração por La Paz altamente curioso e tenso, por ser na maioria das vezes, o único não nativo a circular pela rua naquela momento. Mas bastou apenas algumas quadras que a tensão deu lugar a uma versão mais comunicativa que eu não sabia que habitava em mim, respondendo todos os “Hola!” que a mim eram direcionados, além de fazer perguntas e esclarecer dúvidas nos diversos locais que frequentei durante o dia.

Ainda sobre a Calle Jaén, se trata de uma rua estreita, onde apenas circulam pedestres, calçada com pedras e flanqueada por casas coloniais coloridas, com varandas de ferro forjado, portas de madeira antigas e detalhes arquitetônicos originais do século XVIII. É uma das poucas ruas da cidade que manteve tão bem sua estrutura histórica. A Calle Jaén também é conhecida por suas lendas e histórias de fantasmas. Dizem que é uma das ruas mais assombradas de La Paz, com aparições misteriosas e sons estranhos durante a noite. Muitos bolivianos contam essas histórias como parte do folclore urbano.

Detalhes na Calle Jaén e suas construções históricas

Logo após descer a Calle Jaén, está situada a galeria doartista mais famoso da Bolívia, Roberto Mamani Mamani. Com uma arte primitivista fazendo referências a elementos da cultura indígena Aimará, suas obras estão estampadas em diversos prédios de La Paz e de El Alto.

Parte interna da galeria – Visitação com entrada franca

Não sou um profundo conhecedor de arte, mas pude perceber uma certa semelhança com o estilo adotado pelo artista brasileiro Romero Brito, talvez pelo colorido de suas obras e traços abstratos em algumas destas.

Saindo da galeria, a chuva apertou de vez. Consultei nos lugares salvos no maps e vi que o Museu Nacional de Etnografia e Folclore (MUSEF) seria uma boa opção de passeio. O MUSEF é um dos principais centros dedicados à preservação e divulgação do patrimônio cultural da Bolívia. Instalado em um edifício colonial barroco mestizo do século XVIII, o museu oferece uma rica coleção que abrange desde artefatos pré-hispânicos até manifestações culturais contemporâneas.​

Detalhes e descrições das vicunas, guanacos, lhamas e alpacas, mamíferos da família dos camelídeos e que estão presentes em praticamente todo o território Boliviano.
Fibras animais (lãs) e ferramentas utilizadas no processo de tecelagem e produção dos tecidos
Detalhes dos gorros arqueológicos, popularmente chamados de “gorros Incas”

Uma das sessões que mais achei interessante do museu foi a sessão que relacionava a importância das lhamas e alpacas para a sobrevivências dos povos nativos desde muito antes da chegada dos colonizadores, com a produção de roupas e tecidos por meio da sua lã (sendo introduzido posteriormente o cultivo do algodão e de outras plantas), para que se protegessem das baixas temperaturas, além da identificação dos grupos culturais através da utilização dos gorros arqueológicos (como os da imagem acima). Mais do que apenas uma proteção para a cabeça, os gorros permitiam identificar os grupos através das suas atividades, classes sociais e localizações.

Outra sessão muito interessante é a das máscaras. Os povos pré-hispânicos dos Andes (como os aimarás e quéchuas) já usavam máscaras em rituais religiosos e agrícolas, para homenagear deuses, espíritos ou elementos da natureza. Muitas dessas máscaras representavam animais, ancestrais ou forças sobrenaturais. Hoje, são usadas no carnaval, principalmente no carnaval de Oruro (cidade situada a cerca de 230 km ao sul de La Paz).

Máscaras tradicionais utilizadas durante a “Diablada”, no carnaval de Oruro.
Outras máscaras tradicionais.

O Carnaval de Oruro é o mais famoso e grandioso do país, reconhecido pela UNESCO como Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade. Combina tradições pré-colombianas com rituais católicos, em especial a devoção à Virgem de Socavón. O ponto alto é a “Diablada”, uma dança teatral com máscaras de diabos, anjos e personagens míticos dos Andes. Além disso, é motivo de orgulho nacional para os Bolivianos. Não é raro entrar em um restaurante mais popular e encontrar uma TV com o volume lacrado, passando algum vídeo de grupos tradicionais fazendo as suas apresentações, com músicas e ritmos vibrantes. Pra quem ficou curioso, vou deixar um link com um vídeo aqui.

O museu possui outras sessões com exposições permanentes dedicas a fauna e flora do país, além de outros temas como a evolução da moeda, a importância da exploração do ouro e demais minérios para a economia e o desenvolvimento do país.

Detalhes do edifício do museu, construído no estilo colonial barroco mestizo do século XVIII

Saindo do Museu Nacional, fiz uma parada para o almoço, consegui comprar um chip e contratar um plano de dados pré-pago que por sinal é demasiado burocrático para estrangeiros. Mas enfim, havia reservado esse primeiro dia para isso e viajar dependendo apenas dos Wi-fi dos lugares não seria tão prático.

A próxima parada foi em um dos lugares mais emblemáticos de La Paz, fortemente frequentado por turistas e até mesmo por locais: O famoso Mercado das Bruxas, ou Mercado de las Brujas na língua local. Localizado no coração da cidade, o mercado se estende pelas ruas Linares, Jiménez, Santa Cruz e Illampu, nas proximidades da Basílica de San Francisco.

Representação de uma bruxa, logo na esquina que dá acesso as lojas do mercado

Este mercado é um centro de práticas espirituais e tradicionais da cultura andina, onde se vendem produtos esotéricos, medicinais e rituais. Os principais itens incluem:​

  • Sullus: fetos de lhama secos, usados como oferendas à Pachamama (Mãe Terra) para trazer boa sorte e prosperidade;
  • Plantas medicinais: como retama e armadilhas, utilizadas em rituais de cura;
  • Amuletos e talismãs: destinados a atrair sorte, beleza e fertilidade;
  • Produtos esotéricos: como incensos, poções e velas, vendidos por curandeiros locais conhecidos como yatiris;

O mercado também oferece uma variedade de artesanatos, como tecidos de alpaca e joias.

Interior de uma loja de venda de produtos naturais, chás e temperos. Foi nessa mesma loja que comprei o meu turista starter pack: um pacote de folhas de coca.
Uma das várias lojas do mercado onde são oferecidos os sullus, fetos de lhama dissecados.

A presença dos fetos de lhama dissecados é dos fatos que mais atiça a curiosidade dos turistas que visitam o local. Conforme dito anteriormente, eles são usados principalmente como ofertas rituais à Pachamama — a Mãe Terra na cosmovisão andina — em cerimônias de agradecimento ou pedidos de proteção, prosperidade e fertilidade. Além disso, é costume enterrar um feto de lhama nas fundações de uma nova construção como oferenda, pedindo proteção contra desastres, má sorte ou colapsos. Acredita-se que isso garante harmonia com os espíritos da terra e evita problemas com os “apus” (espíritos das montanhas) ou a própria Pachamama.

Conversando com uma vendedora local, questionei sobre a origem dos fetos vendidos no mercado. Segundo ela, eles não vêm de abates rituais. A maioria morre naturalmente no útero devido ao clima ou complicações gestacionais e são recolhidos por criadores locais com essa finalidade espiritual.

Não sou um especialista em criação de lhamas e demais camelídeos, mas de início no meu ponto de vista não fazia muito sentido a morte desses animais devido ao clima, visto que são nativos do local e estão devidamente adaptados a isso. Sobre as complicações gestacionais, penso que estas podem envolver deficiências nutricionais devido a restrição na alimentação e afins, justificando então a fala da vendedora. Fiquei com esse pensamento durante o resto do dia. Mais tarde, lembrei de ter questionado a vendedora sobre os valores praticados na venda. Segunda ela, em média os preços podem variar entre 50 e 150 bolivianos (aproximadamente R$ 30 a R$ 90). Nas minhas pesquisas, vi que o preço de uma lhama adulta varia na média de 1500 bolivianos (R$ 900). Ou seja, realmente é muito pouco provável que os fetos provém de abates, justamente por não compensar financeiramente. Pronto, agora eu e Luiza Mel podemos descansar em paz rsrs.

Detalhes da fachada de uma das lojas, com inúmeros produtos e informações sobre suas aplicações.
Uma outra loja com venda de especiarias, legumes e ervas – e a sua dona levemente adormecida.
Interior de uma loja de artesanatos e lembranças locais

A tarde já caminhava para o fim, e os sintomas do cansaço bateram de vez. Mesmo tendo tomado o remédio contra o saroche e mascado algumas folhas de coca, a diferença de altitude para quem viajou de São Paulo para La Paz e já é demasiada gritante. Uni as forças que restaram e caminhei até o terminal de ônibus, onde reencontrei o meu mochilão e aguardei na cabine “vip” da empresa (que ao invés de bebidas alcoólicas oferecia de graça chá quente de folhas de coca – convenhamos, muito mais adequado ao momento) o ônibus que mais tarde me levaria até o Uyuni (ou quase até lá). Mas isso já é assunto para o próximo post.