abril 27, 2025

Uyuni: Uma experiência completa no extremo sul da Bolívia

Por Diego Amaral

De cenário de Star Wars, passando por lagunas antiplânicas frequentadas por centenas de flamingos, até piscinas de águas termais aquecidas pela intensa atividade vulcânica. A região do Uyuni é um verdadeiro parque de diversões para quem busca uma experiência por lugares onde as condições extremas do ambiente continuam selecionando diariamente os mais fortes. Em meio a uma das regiões mais inóspitas do planeta, a natureza se mostra forte e surpreendente. É tempo de explorar o Uyuni.

De La Paz até Uyuni

Ao final do primeiro dia explorando La Paz, embarquei pontualmente as 22:00 no ônibus que vai até a cidade de Uyuni, percorrendo uma distância de 540 km em um tempo estimado de 10 horas. Na época paguei um pouco mais de 90 reais pela passagem e o ônibus era relativamente confortável, ainda mais para quem dorme em qualquer lugar e estando um tanto fadigado da altitude.

Acordei era próximo das 07 da manhã e aparentemente o ônibus estava parado fazia alguns minutos, pois restava poucos passageiros dentro deste. Puxei a cortina e vi que havia uma enorme fila de outros ônibus, caminhões e demais veículos de carga, todos parados devido à um protesto.

Protestos na região de Rio Mulatos na rodovia que liga Oruro a Uyuni, região sul da Bolívia.

Conversando com algumas pessoas que ainda estavam no ônibus, descobri que os protestos são algo que acontecem com uma certa frequência no país e já fazem parte do cotidiano das pessoas que ali vivem, muitas vezes passando despercebidos até mesmo pela mídia. Entre as principais motivos está uma combinação de fatores que se acumulam ao longo do tempo. Dentre eles, cabe citar a instabilidade política do país, que desde a renúncia do Evo Morales em 2019, vive várias crises políticas, com disputas eleitorais, mudanças de governo e acusações de fraudes; a economia, que é muito dependente de commodities (como gás e lítio), sendo que crises globais ou decisões internas afetam bastante a vida da população, fazendo que o protestos aumentem; além das demandas sociais, como educação, saúde, transporte, direitos indígenas e questões ambientais, visto que muitos grupos sentem que o governo não atende suas necessidades.

Como falei anteriormente, a população local é tão habituada com esses protestos que acaba nem causando alvoroço ou reagindo de forma violenta, como facilmente ocorreria no Brasil, por fins de comparação. Já estava em contato com Maria, a proprietária da agência de turismo com a qual havia fechado o pacote de viagem pelo salar e arredores e essa me informou que haviam “buses” fazendo o transporte das pessoas que estavam na região do protesto, saindo ou chegando na cidade do Uyuni. Passou pouco menos de uma hora, quando chegou o primeiro veículo, que foi rapidamente ocupado por pessoas que provavelmente já esperavam no local por muitas horas (uma cena semelhante a chegada do trem da linha 7 na estação da Luz as 18:05, com as devidas proporções. Só quem viveu sabe rsrs). Poucos minutos depois chegou um segundo veículo, mas dessa vez eu estava melhor posicionado e consegui ocupar uma das poltronas. Mesmo com a lotação levemente acima da capacidade, a viagem até a cidade de Uyuni foi relativamente tranquila, com a maioria das pessoas desembarcando antes mesmo da chegada na rodoviária da cidade.

Já que estamos na Bolívia, nada mais justo que uma “Cholita” cobradora, não é mesmo?

Importante comentar que o termo “Cholita”, embora muitas vezes seja utilizado para fins depreciativos, se refere a mulheres indígenas (principalmente dos povos aimara e quéchua) da Bolívia, reconhecidas por seu estilo tradicional: saias rodadas chamadas polleras, blusas rendadas, mantas coloridas e o famoso chapéu-coco. As Cholitas são um símbolo de resistência e identidade cultural, visto que durante muito tempo foram discriminadas por serem indígenas e pobres, não podendo entrar em certos lugares, estudar ou ocupar cargos importantes. Veremos mais sobre elas nesse mesmo rolê na Bolívia, aguardem.

Um pequeno povoado, a poucos quilômetros da cidade de Uyuni.

Ainda sobre a cidade de Uyuni, cabe destacar que é a 41° mais populosa do país (10.293 habitantes, segundo dados de 2024). Por ser um dos principais destinos turísticos do país, possui algumas opções de hotéis e restaurantes, mas todos muito rústicos e simples. Não vá esperando encontrar um hotel da rede Hilton ou até mesmo uma franquia do Hard Rock Café. Embora o turismo seja a principal atividade econômica da região, a cidade possui poucos investimentos em infraestrutura e saneamento. A intenção desse post não é romantizar a pobreza ou a falta de recursos, tampouco problematizar a realidade de um país que é tão julgado e mal visto pela maioria das pessoas. Viajar, para mim, é estar aberto a viver experiências que me colocam fora da bolha em que vivo (ou que penso viver). Estar em contato com diferentes realidades (sejam elas mais “favoráveis” que a minha ou não), me dá a possibilidade de visualizar e entender que é totalmente possível viver uma vida com significado, mesmo em condições econômicas, sociais e culturais tão diferentes das que considero “ideais”. Poderia facilmente ter investido o dinheiro dessa viagem em algumas diárias num resort all inclusive no litoral Pernambucano, mas optei pela Bolívia mesmo ciente do que me aguardaria. Sem julgamentos, cada um escolhe o que faz sentido para si, de acordo com o seu momento de vida. Sessão coach finalizada, seguimos com o passeio.

Chegando em Uyuni

Devido ao atraso para chegar na cidade, não foi possível iniciar o passeio no mesmo dia. Falando mais sobre o passeio, o “recorrido” dura 03 dias e 02 noites, e no valor pago, além do transporte, estão incluídos a hospedagem e a alimentação. Na época (dezembro/2021) paguei algo em torno de 700 reais, fazendo a conversão. Embora existam opções privativas, que possivelmente são mais caras, o tour tradicional é feito em veículos 4×4 e de forma coletiva, com até 07 pessoas por grupo. Segundo Maria, a dona da agência, o meu grupo acabou partindo algumas horas antes, sendo que no dia seguinte chegariam novos viajantes e que eu poderia me juntar a estes. Dito isso, ela me recomendou uma hospedagem em frente a agência, onde passei a primeira noite.

Embora cansado da viagem, tomei um banho e resolvi ir atrás de um “almuerzo”. A cidade realmente possui várias opções de alimentação, desde os tradicionais frangos fritos com batatas, passando por sopas de legumes e carnes, até os mais exóticos (ao menos para turistas rsrs) espetos de lhama. Optei pelo último, regado por cerveja local, a Huari. Diferente do Brasil, a tradição na Bolívia é tomar a cerveja em temperatura ambiente. Talvez em locais mais turísticos, como na capital, sejam encontradas alguns exemplares mais resfriados. Buchicho satisfeito, foi hora de passar na farmácia e comprar o kit turista do Uyuni: um protetor labial e um protetor solar facial, conforme recomendado pela dona da agência. E sim, tem opções em que são vendidos ambos em um kit rsrs.

A próxima parada foi no Mercado Público de Uyuni. Havia visto algumas avaliações e comentários no google maps, falando que se tratava de um local frequentado quase que exclusivamente por locais. E foi exatamente o que encontrei. Várias lojas de carnes, verduras, legumes, além de chás e temperos. Esses produtos possivelmente são produzidos pelos próprios moradores em suas hortas caseiras, visto que não são encontradas plantações em grandes escalas nos arredores e a chegada de alimentos frescos vindos de outras regiões é um tanto dificultosa.

Detalhes de um dos corredores do Mercado Público de Uyuni
Tenda com venda de flores e arranjos
Venda de massas e demais alimentos

Repetindo um discurso bastante utilizado por blogueiros e influencers de viagem, os mercados públicos são locais muito interessantes para conhecer um pouco mais sobre os hábitos alimentares e culturais dos habitantes das cidades. Durante o tempo em que permaneci no mercado, não vi nenhum outro turista ou não-local passando por lá. Os olhares desconfiados das vendedoras entregavam que a minha presença era um tanto estranha no local, ainda mais portando uma câmera fotográfica em mãos. Mesmo com ânsia de fazer bons registros, sempre busco ser o mínimo invasivo com as pessoas nos locais em que fotografo (até mesmo porque meus locais “favoritos” são em meio a natureza, em que posso ficar mais tranquilo quanto a isso). Embora sendo cuidadoso ao máximo, fui enquadrado por uma vendedora no final do corredor das massas. Não entendi exatamente o que ela falou, mas pelo tom da voz e gestos, percebi que meus registros não estavam lhe causando muito agrado. Piquei a mula. Recentemente os meus conterrâneos Vanessa e Lorenzo do Por Aí de Kombi estiveram na cidade e fizeram um tour bem bacana, passando por vários lugares inclusive nesse mesmo mercado, aparentemente sem sofrer enquadros rsrs. Vou deixar o link do vídeo do canal deles aqui.

O primeiro dia da expedição

No dia seguinte, pouco antes das 10:00 da manhã, fui até a agência onde Maria e o Juan, nosso motorista e guia do passeio, faziam os últimos preparativos para que pegássemos a estrada. Não demorou muito e já chegaram os novos integrantes: Elena, uma italiana que estava fazendo uma viagem de 6 meses pela América Latina; Taylor, um estadunidense que havia encontrado Elena duas semanas atrás no Peru e seguiam viagem juntos desde então; e Artur e Sofia, pai e filha colombianos que estavam realizando um sonho antigo de visitar a Bolívia e conhecer o maior deserto de sal do mundo. Enquanto Juan amarrava nossas bagagens na parte superior do carro, fomos tendo nosso primeiro contato, concordamos que o inglês seria a língua oficial do rolê (modo Joel Santana ativado hahaha), podendo “cambiar” para o espanhol que era entendido por todos, com exceção do estadunidense (a gente até tenta defender eles, mas é complicado rsrs).

Nosso motora/guia preparando as bagagens para a partida

Como o passeio passa por locais com pouco ou nenhum sinal de telefone ou internet, os guias são bastante prevenidos na questão de combustível, ferramentas e até mesmo peças para eventuais reparos nos veículos. Além disso, boa tarde dos alimentos que são consumidos durante o passeio já são pré-preparados com antecedência e armazenados no carro. Tudo pronto, é hora de pegar a estrada. Como sugestão do próprio Juan, durante toda a viagem fizemos rodízio de lugares no carro, para que ninguém fosse prejudicado. Como boa tarde das estradas são de terra e estavam em más condições, os assentos de trás se tornam muito desconfortáveis. Iniciei a jornada como copiloto, já garantindo uma posição favorável para os registros.

Estradas e planícies bastante alagadas nas épocas de chuva
Ponte sobre um rio sazonal da região e o reencontro com o asfalto.

Enquanto conversávamos e colocávamos músicas tradicionais de cada país no som do carro, nosso motorista seguia visivelmente tenso com as condições da estrada. Evitava até mesmo conversar, dando respostas ríspidas e dizendo que precisava ter concentração total no que estava fazendo. Nos dias anteriores, havia olhado as avaliações de algumas agências e vi que haviam vários relatos de turistas que classificavam a experiência como “decepcionante”, justamente pela por conta dos guias, que esses apresentavam má vontade durante todo o passeio, não dando sequer o mínimo de informações sobre os lugares ou até mesmo respondendo dúvidas. Fiquei com um grande receio de ter contratado um passeio como o descrito nas avaliações. Mas foi apenas o carro tocar em uma pista asfaltada, que o sorriso brotou no rosto até então fechado do Juan, respondendo todas as questões até então ignoradas, dando detalhes de como seriam os próximos dias e anunciando que dentro de alguns minutos estaríamos fazendo uma parada para o almoço. A esperança renasceu rsrs.

Villa Alota, a poucos quilômetros da fronteira com o Chile. Nossa pausa para o almoço.
Um prato típico boliviano: carne de lhama, acompanhada de quinoa e uma salada de legumes e ovos

Todos alimentados, seguimos o passeio. É incrível como a paisagem muda em questão de minutos naquela região. Saímos de uma área totalmente deserta e com pouca vegetação, passando para planícies com arbustos verdes e criações de lhamas e ovelhas. Na sequência, rochas enormes que parecem ter saído de cenários de filme, até chegar em lagoas formadas por águas do degelo das montanhas nevadas, habitadas por flamingos que encontram ali o lugar perfeito para se reproduzirem. As imagens falam por si só.

Criação de ovelhas e seu “pastor”, nas primeiras áreas com vegetação em que passamos.
Rebanho de lhamas em uma superfície alagada. E o imponente Cerro Tomasamil ao fundo
Enormes formações rochosas em meio ao deserto

A primeira parada foi na Laguna Cañapa, uma lagoa de água salgada escondida em pleno altiplano boliviano, a mais de 4.100 metros de altitude. Ela é relativamente pequena se comparada a outras lagoas da região, mas não perde em nada no quesito beleza. Por estar localizada numa região extremamente árida (quase desértica), a evaporação acaba sendo maior que a reposição de água. Isso intensifica ainda mais o acúmulo de sais, fazendo com ela se torne rica em minerais e perfeita para aves como flamingos, que se alimentam da vida microscópica que cresce nas águas. Mesmo fazendo um dia bastante fechado, as imagens dão uma pista de como esse lugar é especial.

Chegada na Laguna Cañapa, a primeira parada da expedição
Concentração de flamingos, que se alimentam de crustáceos e demais organismos que vivem na laguna

Na sequência, nossa parada foi na Laguna Hedionda. Assim como a Laguna Cañapa, ela possui sua formação originada da água de degelo das montanhas. É famosa principalmente pela quantidade de flamingos (ainda maior que na Laguna Cañapa – e pelas suas águas esbranquiçadas com cheiro forte de enxofre (o nome “Hedionda” vem justamente disso — “fedorenta” em espanhol). Vale lembrar que embora os locais sejam muito convidativos, não é permitido entrar nas águas justamente pela alta concentração de minerais, nem mesmo voar drones, para que a fauna local não seja perturbada (Luisa Mell curtiu isso rsrs).

O incrível voo do flamingos.
Uma pequena vila, próxima a Laguna Hedionda. É parada para alguns passeios e possui opções de hospedagem.
Nosso amigo estadunidense compondo a paisagem.

Finalizando a parada na Laguna Hedionda, seguimos rumo ao local onde seria o pernoite. A chuva apertou de vez e a temperatura caia cada vez mais. Nosso guia brincou com uma pequena possibilidade de neve no dia seguinte, o que deixou o grupo todo muito agitado e na expectativa. Após enfrentar uma longa estrada bastante precária e prejudicada pela chuva, adentramos na Reserva Nacional de Fauna Andina Eduardo Avaroa e chegamos no povoado de Huayllajara. Nesse povoado existem pelo menos 04 opções de hospedagem e é uma parada bem estratégica para quem está fazendo o tour pela região, visto que fica próximo de vários atrativos turísticos. Fomos direcionados até os quartos onde iríamos passar a noite, e após um banho (que eu matei por motivos de frio extremo rsrs) fomos recebidos com uma saborosa sopa de legumes, sucedida por uma pasta com molho e muito queijo, regado a um vinho seco. E após muito conversar sobre como foi o primeiro dia e compartilhar expectativas para os próximos, nos deixamos dominar pelo efeito relaxante do vinho e fomos descansar porque o rolê do dia seguinte se iniciaria antes mesmo do sol nascer.

Um jantar muito saboroso preparado pela nossa anfitriã, Lourdes.

Segundo dia e várias surpresas

O combinado foi todos estarem prontos para o “desayuno” pontualmente as 05:00 da manhã. Coloquei o toque mais escandaloso que encontrei para o meu despertador, visto que estava com receio de perder a hora. Acordei um pouco antes do horário, e ao olhar pela janela da hospedagem, vi que as previsões do nosso guia se concretizaram a pela primeira vez na vida estava cara a cara com ela, a neve!

A imagem que vi ao olhar pela janela: nosso guia preparando o carro e a paisagem ao fundo repleta de neve

Fiquei emocionado. Peguei a câmera e o primeiro casaco que vi na frente e sai porta a fora para conferir de perto. E estava tudo coberto de neve, desde os carros, pedras e telhados das casas. Me senti em um filme de Natal qualquer. Não precisou nem luzes ou árvores decoradas. Com a mesma empolgação de uma criança que acorda na manhã de Natal curiosa para abrir os presentes, “engoli” o café e já me posicionei dentro do carro, onde a nossa primeira parada seria nos Géiseres de Sol de Mañana. Mas a paisagem do caminho nos obrigou a fazer várias outras paradas contemplativas antes do destino final.

Uma montanha completamente tomada pela neve.
Uma paisagem que no dia anterior era de vegetações avermelhadas deu lugar um verdadeiro mar de arbustos e pedras nevadas.

Como dito anteriormente, o primeiro destino do dia seriam os Gêiseres de Sol de Mañana. Falando de forma genérica, um gêiser funciona como uma panela de pressão natural debaixo da terra: A água da chuva ou do degelo vai se infiltrando no subsolo até encontrar rochas muito quentes, aquecidas por magma (o “fogo” que vem do centro da Terra). Lá embaixo, a água começa a esquentar muito, mas como ela está presa em fendas e bolsões, sob alta pressão, ela não ferve facilmente (semelhante a um cozimento em uma panela de pressão, por fins de comparação). Conforme o calor aumenta, a água vira vapor. A pressão vai ficando tão grande que uma hora ela precisa escapar. Quando a pressão supera o peso da água acima, a água e o vapor explodem para cima por rachaduras ou buracos, formando o jato de água e vapor que fica visível. Depois da explosão, o sistema esfria um pouco, a água volta a infiltrar… e o ciclo começa novamente.

Embora não sejam tão famosos e grandiosos como os seus primos chilenos (Gêisers del Tatio), os gêiseres de Sol de Mañana possuem suas particularidades. Nos seus arredores o chão é todo de tons avermelhados, amarelados e cinzentos, por causa dos minerais e da atividade vulcânica. Além disso, como é característico de áreas geotérmicas, o ar possui altas concentrações de enxofre, o que pode causar mal estar se inalado durante muito tempo. Como o próprio nome sugere, as atividades vulcânicas são mais intensas durante o início da manhã.

Gêiseres de Sol de Mañana, próximos a fronteira da Bolívia com o Chile

Saindo dos gêisers e indo em direção a próxima parada, as Termas de Polques, passamos em frente à Usina Geotérmica de Laguna Colorada. O projeto estava em andamento em 2021, e segundo pesquisas, ainda segue no mesmo estado, visto que a obra já foi paralisada diversas vezes por questões políticas, técnicas e ambientais. O projeto inicial foi pensado para gerar 100 megawatts de eletricidade (o suficiente para abastecer dezenas de milhares de casas), diversificando a matriz energética do país que hoje ainda é muito baseada em gás natural.

Usina Geotérmica de Laguna Colorada, projeto piloto para exploração do potencial geotérmico da região.

Alguns quilômetros após os gêisers, chegamos nas Termas de Polques, que são piscinas naturais de água termal aquecidas por atividade vulcânica subterrânea. A água possui temperaturas que variam entre 28°C e 30°C, o que torna a experiência ainda mais marcante, se considerarmos que a temperatura ambiente em dias muito frios, como no da viagem, pode estar abaixo de zero graus. Além das próprias termas, a presença de montanhas nevadas ao fundo deixam o local ainda mais surreal.

Detalhe de uma das piscinas aquecidas de forma natural pela atividade vulcânica do local
O local é uma parada tradicional das agências que realizam o tour pelo Uyuni
Temperatura externa de cerca de -5°C contrastando com a temperatura de 30°C dentro da piscina. O terror do seguro viagem rsrs

Entrar nas termas e aproveitar a água naturalmente aquecida foi certamente um dos pontos altos da expedição. Meu único disclamer vai para os turistas e demais pessoas que frequentam o local e urinam na água. Embora a água esteja constantemente sendo renovada, creio que não haja tempo o suficiente para que ela seja “purificada” entre um mijão e outro rsrs. Vale lembrar que o local possui banheiros e vestiários (são rústicos, ok, mas quebram o galho). Minha bermuda e toalha de banho precisaram ficar isolados do resto das roupas na mochila. Mesmo assim, é aquele tipo de perrengue de viagem que vale a pena passar.

Saindo das termas, devidamente aquecidos (e aromatizados rsrs) seguimos rumo ao deserto de Dali. Foi dados esse nome ao local porque suas formações rochosas espalhadas parecem ter saído de um quadro do pintor surrealista Salvador Dalí — embora o artista nunca tenha estado ali (rimou kkkk). As pedras têm formas peculiares, e o cenário é tão absurdo e vazio que lembra muito o estilo dele.

Detalhes das pedras e formações rochosas que deram nome ao local

A presença da neve deu um clima ainda mais dramático ao local. Aproveitamos o tempo de parada e fizemos alguns bonecos de neve, brincamos de guerra de bola de neve, além de tirarmos muitas fotos do local.

O primeiro boneco de neve a gente não esquece…
Nosso grupo com o mascote da expedição.

A próxima parada seria a Laguna Colorada, tida por muitos como a mais bela da Bolívia. Enquanto isso, a paisagem do caminho seguia nos reservando boas surpresas e mudando completamente ao longo do trajeto, com a neve derretendo e dando lugar a uma paisagem que era um show de cores e combinações.

Detalhe da presença de guanacos praticamente camuflados em meio à vegetação.
Superfície desértica com característica mais arenosa, diferente de tudo que havíamos visto até então.
Presença de ovelhas em um pequeno povoado, as margens da Laguna Colorada.

Após algumas horas de estrada e muitas paradas para fotos, chegamos na Laguna Colorada. A laguna é famosa por suas águas vermelhas, que são causadas por algas e minerais presentes na água. A sua tonalidade varia conforme o ângulo da luz e a estação do ano, se tornando mais intensa durante os meses mais quentes. Está situada a 4.278 metros de altitude, o que contribui para o clima gelado e para a vegetação adaptada. É considerada um dos melhores lugares do mundo para ver flamingos, e existem três espécies que visitam a lagoa: o flamingo andino, o flamingo chileno e o flamingo de James.

Laguna Colorada, com sua cor marcando mesmo em um dia com pouca incidência de luz solar.
A presença de flamingos é uma marca registrada da Laguna, sendo possível ver até 03 espécies destes no local.
Além dos flamingos, no local também existem lhamas e ovelhas, tornando a paisagem ainda mais fascinante.
E foi por ali que fizemos a parada para o almoço, dessa vez a tradicional quinoa veio acompanhada de uma salada de legumes e peixes.
Detalhes da vegetação do local

A paisagem na região da Laguna Colorada é simplesmente incrível, e mesmo que a parada dure torno de duas horas, a vontade é de ficar o resto do dia contemplando essa verdadeira maravilha da natureza. Como nosso tempo é curto, precisamos seguir viagem. A próxima parada é em um dos cartões portais de Uyuni, o famoso Árbol de Piedra (Árvore de Pedra).

O Árbol de Piedra é uma formação rochosa que, devido à ação do vento e da erosão, ganhou a forma de uma árvore com um tronco e galhos esculpidos na pedra. Apesar de ser uma rocha, ela parece realmente com uma árvore, o que dá um visual surreal ao local, com formações chegando a 7 metros de altura.

A árvore de Pedra, um dos cartões postais do Uyuni.

O guia comentou sobre a proibição de se “pendurar” na pedra, visto que atos como esse podem causar até mesmo a queda desta. Outro fato comentado por este, é de que, devido a ação natural do tempo, vai chegar um momento em que o “caule” da árvore se tornará tão estreito que irá vir a tombar. Se será em em 10 ou 100 anos, não sabemos. É apenas mais um lembrete que de que o tempo está passando e o quanto a nossa existência (e de todas as demais criaturas vivas do planeta) é finita e pode se “quitar” a qualquer momento.

Nosso amigo colombiano posando em cima de uma rochas, nos dando uma boa noção da grandiosidade destas (nessa era permitida a subida).

Finalizando as nossa visita na Árvore de Pedra, seguimos rumo ao nosso último atrativo antes do retorno ao Uyuni, a Laguna Turquíri. É uma laguna menos conhecida que as demais, mas igualmente impressionante. Como o próprio nome sugere, a Laguna Turquíri tem águas de um tom turquesa vibrante, que variam de acordo com a luz e os minerais presentes na água. Assim como muitas das lagoas da região andina, a Laguna Turquíri possui altas concentrações de sais minerais e algas, o que contribui para sua cor turquesa e também para a salinidade da água.

Laguna Turquíri, um pouco menos explorada que as demais lagunas da região
Formações rochosas impressionantes, ao redor da laguna.

Lembro de ter visto em alguns blogs que a Laguna Turquíri seria a única lagoa da região a ser de água doce, o que não passa de uma fake news. Como muitas das lagoas da região altiplânica da Bolívia, ela é salina, com alta concentração de sais minerais, contendo muitos minerais que são comuns nas áreas de atividade vulcânica. Ou seja, sua água não é recomendada para banho tampouco para consumo.

Finalizando o circuito das lagunas, é hora de seguir viagem rumo ao Uyuni, para pernoite e preparação para visitar o grande atrativo da viagem, o enorme deserto de sal. Após enfrentarmos algumas horas de temporal na estrada e atravessarmos pequenos riachos (em um desses riachos o nosso carro simplesmente apagou, sendo necessário ser rebocado por um carro de outra agência que passava pelo local), chegamos ao povo de San Cristóbal.

Entre conversas e alguns goles de cerveja e conhaque gentilmente fornecidos pelo nosso guia, fomos seguindo viagem. Ao chegar no hotel (ou hostel), tive a surpresa de se tratar de um hotel feito inteiramente de sal (sim, estava no roteiro, mas acabei focando mais nas lagunas e demais experiências e acabei esquecendo desse detalhe rsrs). Logo na recepção, já fomos surpreendidos por esse local tão específico e diferente, com um clima muito agradável e um verdadeiro refúgio de viajantes do mundo todo.

Detalhes da recepção do Hostel Dulce Salada, situado no povoado de Colchani, cerca de 20 minutos da cidade de Uyuni.
Corredores, sofás e demais itens de decoração, todos feitos de sal retirado do Salar de Uyuni
Esse foi o quarto que passei a noite. Detalhe das decorações e mesas de cabeceira feitas de sal. Pode-se esperar várias coisas de uma noite nesse quarto, menos que seja sem sal rsrs
Percebi que o quarto ao lado estava vazio e resolvi “curiar”. Esse com duas camas, mas seguindo o mesmo padrão de construção.
Detalhes do refeitório e área de convivência do hostel.

Foi uma das minhas primeiras experiências me hospedando em hostel, e embora ficando em um quarto individual (até porque ninguém merece acordar na madrugado comigo roncando no mesmo quarto rsrs), pude presenciar uma atmosfera bastante tranquila e amigável. Encontrei outros viajantes do México e da Inglaterra, esse último me relatou que já esteve duas vezes no Brasil e visitou lugares como a Fortaleza, a floresta amazônica e Foz do Iguaçu, além de ser um grande fã da Ivete Sangalo. Ficamos conversando até altas horas da madrugada, até que a recepcionista nos convidou a se acomodar nos quartos pois estava na hora de desligar as luzes. Assim encerramos esse intenso segundo dia de expedição.

Detalhes da fachada do Hostel Dulce Salada em Colchani, região de Uyuni.

O terceiro e último dia de expedição

Nossa primeira parada do último dia no cemitério de trens, que fica bem próximo da cidade de Uyuni. O local é um grande terreno cheio de locomotivas antigas e vagões enferrujados, abandonados no meio do deserto. São dezenas de trens que foram deixados lá no começo do século XX e hoje formam um verdadeiro museu a céu aberto.

Contextualizando, no final do século XIX e início do século XX, Uyuni era um importante centro ferroviário. Os trens eram usados principalmente para transportar minérios (como prata, estanho e outros) das minas bolivianas até os portos no Chile. Mas com o declínio da mineração (principalmente após a crise do estanho em meados do século XX), e também devido a problemas políticos e econômicos, o sistema ferroviário foi abandonado. Como não havia o que fazer com os trens velhos, eles foram simplesmente deixados ali, no deserto. É um lugar bem curioso e bastante visitado por turistas.

Vagões de trens abandonados em pleno deserto. A maioria dos trens é de origem britânica, importados quando a Bolívia investiu pesado em ferrovias.

Finalizando o passeio no cemitério de trens, é chegado o momento mais aguardado da expedição: visitar o Salar de Uyuni, simplesmente o maior e mais alto deserto de sal do mundo, com 10.582 km² de extensão — maior que cidades inteiras e visível até do espaço. Falando em ser visto do espaço, o Salar de Uyuni começou a ser observado já nas primeiras missões de satélites que faziam imagens da Terra, principalmente a partir da década de 1970, com o lançamento dos satélites Landsat (um programa conjunto da NASA e do Serviço Geológico dos EUA). Desde então, ele vem sendo constantemente monitorado por satélites para estudos climáticos, geológicos e para a calibração de sensores.

Falando da sua formação, esta data de milhares de anos atrás, quando a região era coberta por um imenso lago pré-histórico chamado Lago Minchin. Com o tempo, o lago secou devido a mudanças climáticas, deixando para trás vastos depósitos de sal e minerais. O salar é como uma camada imensa e plana de sal puro (com espessura que varia de 1 a 10 metros), com alguns trechos cobertos por uma fina película de água durante a época de chuvas, tornando o salar em um espelho gigante que reflete o céu, dando a impressão de estar caminhando nas nuvens.

O salar coberto com uma fina camada de água, formando um espelho gigante.

Embora sendo possível se locomover pelo salar até mesmo com veículos mais baixos, não é recomendado, visto que o sal possui alto poder de corrosão, causando danos na parte elétrica e mecânica dos veículos. Os próprios veículos de passeios, além de serem alto e andarem com uma velocidade controlada para que a água não atinja a parte inferior, passando por lavagens diárias. Outro ponto que vale destacar é o risco de se perder pelo salar, caso esteja viajando com veículo próprio e sem guia. Este possui uma extensão de cerca de 100 km, sendo boa parte dessa distância sem sinal algum de celular ou civilização.

Um dos passeios tradicionais no Uyuni é a visita à Isla Incahuasi, cheia de cactos gigantes (alguns com mais de 10 metros de altura). Porém, devido as chuvas e ao salar estar alagado, esse passeio acabou ficando de fora do nosso roteiro. Está aí um bom motivo para retornar, mas dessa vez na estação seca. Ainda falando dessa Ilha, o guia compartilhou conosco um perrengue que passou com turistas alguns anos atrás, durante uma visita a mesma. O carro sofreu uma pane elétrica durante a volta, e sem sinal de celular nem possibilidades de pedir ajudar, tiveram que pernoitar dentro do carro até que fossem encontrados no dia seguinte pela manhã. Só imaginem o desespero rsrs.

Detalhe de uma pessoa caminhando pelo salar, tornando-se um mero ponto em meio à vasta extensão do enorme espelho.

Um fato curioso é que o Rali Dakar, um dos rallys mais difíceis e extremos do mundo, misturando carros, motos, caminhões, quadriciclos e UTVs numa corrida de resistência através de desertos, montanhas e terrenos inóspitos, teve passagem pela Bolívia durante o período de 2014 a 2018. As provas bolivianas focaram especialmente nas regiões do Altiplano, passando por lugares com Uyuni, Potosi e Ururo. O Salar de Uyuni era tão extremo que muitas vezes o trecho lá foi considerado o mais difícil da edição — entre terrenos planos super escorregadios e variações enormes de temperatura (de -5°C de manhã para 20°C à tarde).

O evento colocou a Bolívia no radar de muitos viajantes e amantes de aventura, injetando milhões de dólares na economia boliviana entre hospedagem, alimentação, transporte e comércio. Além disso, houve um grande envolvimento popular, visto que as pessoas se reuniam nas estradas e cidades para ver os pilotos passarem, muitas vezes com bandeiras da Bolívia. E já que estamos na terra do sal, nada mais justo que o tradicional símbolo do Dakar, a silhueta do tuaregue (que é um nômade do deserto do Saara, coberto com turbante e véu no rosto) ser feita de sal, não é mesmo?

A tradicional silhueta do tuaregue, símbolo do Rally Dakar, que na Bolívia ganhou uma versão feita de sal e se tornou uma das atrações turísticas do salar de Uyuni.

Próxima ao monumento Dakar está a Plaza de Las Banderas de Uyuni, um local onde estão cravadas as bandeiras de todos os países cujos pesquisadores já visitaram o salar, a fim de realizar pesquisas e estudos sobre o local. E claro que a bandeira do Brasa estava marcando presença rsrs.

Plaza de Las Banderas de Uyuni.

E logo após a plaza, está o Playa Blanca, famoso por ser o primeiro hotel feito de sal da Bolívia e do mundo. Foi construído na década de 1990 para atender aos primeiros viajantes que começavam a explorar o Salar de Uyuni, e embora sendo um projeto super inovador na época, gerou preocupações ambientais (devido ao impacto no salar e à falta de infraestrutura para o lixo e esgoto). Com o tempo, o hotel deixou de funcionar oficialmente para hospedagem (por regras ambientais), mas permaneceu como atração turística.

Um cartaz na entrada do Playa Blanca, motivo de orgulho para os bolivianos.

Na parte interna, podemos observar decorações representando elementos da cultura local, como lhamas e as próprias Cholitas. Há também uma loja de souvenirs e venda de bebidas. Nesse mesmo local as agências servem as refeições para os turistas. Por algum motivo acabei esquecendo de registrar, mas foram servidos pratos a base de carne de lhama, quinoa e legumes, seguindo a mesma linha dos demais dias da expedição.

Estátua de lhama, feita de sal e coberta com pele do animal.
Representação de uma Cholita, toda feita de sal.
Pequena loja onde são vendidos souvenirs e demais lembranças do salar.

Após o almoço, tivemos a tarde livre para passear e tirar várias fotos no salar. Cabe ressaltar que o nosso guia/motorista mostrou ser um hábil fotógrafo, nos instruindo a fazer registros bem legais do local. As fotos mais tradicionais no salar envolvem o uso da superfície alagada e espelhada para causar ilusão de ótica. Sou um pouco avesso a essas fotos demasiadamente clichês, mas tenho que admitir que essa em especial se tornou uma das lembranças mais legais da viagem.

As fotos com efeito de ilusão de ótica. O óculos espelhado realmente ajuda a bloquear o reflexo do sol que causa desconforto nos olhos, não é apenas mau gosto rsrs.

Enquanto aguardávamos o pôr-do-sol, gravamos alguns vídeos, tiramos fotos do grupo e passamos boa parte do tempo dentro do carro, nos protegendo do forte vento, chuva e raios que caíram de forma contínua até o anoitecer. O sol se pôs de forma tímida, mesmo assim foi um espetáculo mais que especial, encerrando com chave de ouro essa jornada fantástica que foi a expedição por Uyuni.

Um pôr-do-sol tímido no salar, mas nem por isso menos especial.

Após o anoitecer, voltamos para a cidade. Os colombianos do grupo seguiram viagem rumo ao seu próximo destino e eu, Elena e Taylor, que voltaríamos juntos para La Paz no final da noite, procuramos um restaurante local para jantar e celebrar a noite de Natal (sim, era 24 de dezembro e só nos damos conta disso poucos instantes antes dessa foto rsrs).

Feliz Navidad! Com uma Paceña, uma bela porção de quinoa e um tradicional frango frito.

Passamos o resto da noite conversando e refletindo o quanto aquele passeio havia sido especial e marcante para cada um de nós. E que muitas vezes as coisas não acontecem da forma como gostaríamos, mas que esses desencontros acabam proporcionando novos encontros, e esses por sua vez, experiências que marcam um vida inteira. Foi assim com o passeio adiado devido aos protestos, o grupo tão bacana que foi formado ao total acaso, a grata surpresa da neve e das memórias incríveis que esse dia nos reservou, o dia ensolarado e o pôr-do-sol fantástico no salar. São essas pequenas coisas que fazem uma viagem valer a pena. Entender que embora seja agradável a ideia de estar sob o controle de tudo, isso é humanamente impossível (e que bom que é assim!).

O tempo passou depressa e logo chegou a hora de pegar o ônibus, voltar a La Paz e seguir rumo a novas aventuras. Mas isso já é assunto para um outro post.